Logomarca Paulo Marques Notícias

08/08/2020 | 06:17 | Geral

Como superar os gargalos às privatizações no Brasil, que tem 46 estatais controladas pela União e 148 subsidiárias

Ao todo, segundo dados do Ministério da Economia, são 614 ativos federais, se contabilizadas, ainda, empresas coligadas e participações acionárias

Ao todo, segundo dados do Ministério da Economia, são 614 ativos federais, se contabilizadas, ainda, empresas coligadas e participações acionárias
Braço direito de Jair Bolsonaro (E), ministro Paulo Guedes ainda não colocou em andamento promessa de campanha - EVARISTO SA / AFP
Externada durante a campanha eleitoral, a promessa do ministro da Economia, Paulo Guedes, de “privatizar tudo” ficou pelo caminho. Passados um ano e oito meses de gestão, o governo Jair Bolsonaro se desfez de uma série de bens, mas não vendeu nenhuma das 46 estatais de controle direto da União. Nesta reportagem, GaúchaZH detalha o cenário, dá voz a especialistas e discute os principais entraves às privatizações no Brasil, tema envolto em controvérsia.
Segundo dados da Secretaria Especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados, o governo federal tem 614 ativos. Nesse bolo, estão desde companhias dependentes do Tesouro Nacional até participações acionárias (veja os gráficos abaixo). 
De janeiro de 2019 a fevereiro deste ano, o órgão aponta 84 ativos alienados (redução de 12% frente ao total de 698, até então), somando R$ 134,9 bilhões. A título de comparação, Guedes chegou a projetar ganhos totais de R$ 1,2 trilhão. 
Na prática, a estratégia da equipe econômica acabou priorizando o que os analistas chamam de desinvestimento, isto é, a saída do Estado de certos empreendimentos e ramos de atividade. As operações realizadas — que não exigem aval do Congresso — restringiram-se à venda de ações e de empresas subsidiárias ou coligadas (cujo dinheiro fica no caixa das estatais às quais são vinculadas). Entre elas, estão braços da Petrobras e da Eletrobras. 
— Não houve privatização de fato, no sentido de vender empresas controladas pelo Tesouro. O governo vendeu subsidiárias e participações acionárias, mas isso não reduz a presença do Estado na economia. Você pode vender todas as participações da Petrobras e ela continuará sendo uma estatal. Isso não é reformar o Estado — afirma a economista e advogada Elena Landau, que preside o conselho acadêmico do movimento Livres.
Diretora de Desestatização do BNDES no governo de Fernando Henrique Cardoso, Elena comandou a maior experiência de privatização do país, que contemplou desde a rede ferroviária até os setores petroquímico, siderúrgico e de fertilizantes, entre outros. Hoje, na avaliação da economista, o principal gargalo é a “falta de liderança”.
— Resistência às privatizações sempre houve e sempre haverá, porque você mexe com muitos interesses, mas, se não tiver alguém que arbitre os conflitos, não funciona. Guedes e Bolsonaro não têm feito esse papel — opina Elena.
Coordenador do Observatório de Estatais da Fundação Getulio Vargas (FGV), Márcio Holland identifica outro obstáculo a ser superado: a ideologização extrema do assunto. Para o economista, que foi secretário de Política Econômica no governo Dilma Rousseff, nem toda estatal é ruim, desde que atenda a funções sociais e seja blindada de interferências político-partidárias. 
Ao mesmo tempo, Holland adverte para o fato de que o Brasil tem empresas públicas demais e está atrasado nas desestatizações, se comparado a outros países. A maioria iniciou o processo nos anos de 1980, com o Reino Unido à frente.
— A privatização em si não deveria ser tratada como assunto ideológico, mas como discussão da melhor estratégia de participação do Estado na economia brasileira, sem essa paixão toda. Aí o debate acaba — avalia o professor.
Apesar dos resultados considerados tímidos, Guedes e a equipe rebatem as críticas, apontam avanços com as vendas já realizadas, prometem ampliar o escopo em 2021 e sustentam que, em 2020, a meta traçada (de alienar 300 ativos) só não será atingida devido à crise do coronavírus. 
Ainda assim, na última quinta-feira (6), o ministro afirmou, em videoconferência, que o governo irá propor a privatização de “três ou quatro grandes companhias” em até 60 dias. Não revelou quais são as escolhidas, mas se especula que Eletrobras e Correios estejam na lista.
— Acho que o Congresso estará ao nosso lado. O presidente estará nos ajudando com a coordenação política — declarou Guedes.
Mesmo que isso se concretize, Rafael Cagnin, economista-chefe do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), teme que a situação econômica interna e externa dificulte o intento. Na avaliação dele, o governo precisa estudar o melhor momento de agir.
— Será difícil encontrar condições favoráveis neste ambiente de risco. O melhor seria esperar uma recuperação mais consistente da economia — pondera Cagnin.
Pontos-chave
Com a ajuda de especialistas, GaúchaZH pontua três itens fundamentais ao êxito de qualquer privatização, que, se não forem observados, podem representar entraves e resultar em problemas.
1) Planejamento estratégico
Qualquer programa de desestatização precisa ser bem planejado, o que nem sempre acontece. Isso inclui cronograma claro e estudos aprofundados para garantir bons resultados aos cofres públicos e à população, com a melhoria dos serviços prestados.
— Não basta dizer que vai privatizar tudo e que todas as estatais são uma porcaria. Essa postura inclusive atrapalha, porque não é técnica. É importante planejar bem e eleger prioridades — sintetiza Sérgio Lazzarini, professor de Organização e Estratégia do Insper. 
Uma boa alternativa, segundo Claudio Frischtak, sócio-fundador da Inter.B Consultoria, seria dar ao BNDES a missão de liderar o processo, como fez nos anos de 1990, na gestão de FHC — hoje, cabe à Secretaria de Desestatizações conduzir os planos, ainda que a instituição bancária seja responsável pela estruturação das propostas. O banco tem expertise, recursos e quadro profissional qualificado. 
— Infelizmente, no início do atual governo, houve certa ambiguidade em relação ao BNDES (com a polêmica da suposta caixa preta), mas ele poderia ser protagonista e ajudar muito mais — sugere Frischtak.
Outra recomendação é pensar no longo prazo, e não apenas no intervalo de um mandato. 
— Um projeto ambicioso como o que Guedes sinaliza precisa de uma década, no mínimo, inclusive para o convencimento da sociedade e das instituições — diz Frischtak.
2) Coordenação política
Para obter apoio à venda de estatais, ressalta o economista Rafael Cagnin, é fundamental ter capacidade de coordenação e de articulação política. Sem isso, por se tratar de um tema polêmico, dificilmente o Executivo terá o aval do Legislativo.
— Esse é um déficit que o atual governo tem apresentado desde o início e que precisa ser superado se o objetivo é levar essa agenda adiante — ressalta Cagnin.
Em movimento recente, o presidente Jair Bolsonaro se aproximou de deputados do centrão e ofereceu cargos aos aliados, mas há dúvidas se a manobra será suficiente, por exemplo, para assegurar a aprovação do projeto que autoriza a privatização da Eletrobras. O texto está parado no Congresso desde 2019, o que pode minar as pretensões de Guedes. 
Outra necessidade, na avaliação de Claudio Frischtak, é adotar um discurso unificado:
— Não pode haver ruídos. Quando você tem uma ala no governo que fala muito, faz pouco e é muito ideológica, atrapalha. Cabe ao presidente dirimir os conflitos.
Países que se destacaram nas privatizações tiveram figuras fortes na liderança. Foi o caso de Margaret Thatcher, no Reino Unido da década de 1980, que coordenou ambicioso programa de desestatizações.
3) Regulação de serviços
Criadas nos anos de 1990 para fiscalizar a qualidade de serviços públicos concedidos ou privatizados, as agências reguladoras são um ponto-chave para assegurar longevidade às desestatizações e reverter desconfianças. Entre elas, estão órgãos como as agências nacionais de Telecomunicações (Anatel), de Aviação Civil (Anac) e de Energia Elétrica (Aneel). 
Com o passar dos anos, a maioria sofreu forte influência política e perdeu força. Em 2019, com a aprovação do novo marco legal do setor, foram atualizadas as regras de gestão, organização, processo decisório e controle social das agências. Isso trouxe melhorias, mas ainda há desafios.
— A legislação aprovada é boa, o problema é botar para funcionar — resume Claudio Frischtak.
O economista lembra que países bem-sucedidos em desestatizações são célebres pela qualidade da regulação. Entre eles, está a Nova Zelândia.
— Lá, as agências têm autonomia decisória, financeira e administrativa. Criou-se um ambiente de respeito às decisões tomadas. Não quero dizer com isso que temos de fazer igual, mas podemos nos inspirar nesse exemplo, mesmo que seja um país pequeno — diz Frischtak.
Para entender
Empresa de controle direto: é aquela cujo principal acionista é a União, por deter mais de 50% das ações com direito a voto, tendo, assim, o poder de eleger a maioria dos diretores da empresa e tomar decisões
Subsidiária: espécie de subdivisão de uma empresa que se encarrega de tarefas específicas. A Eletrobras é uma das estatais com mais subsidiárias
Coligada: empresa sobre a qual as estatais ou suas subsidiárias exercem influência significativa, mesmo sem ter o controle. A lei não estabelece um percentual mínimo, mas presume que toda participação acima de 20% é significativa o suficiente para ser considerada automaticamente uma coligada
Participação simples: empresa sobre a qual as estatais ou suas subsidiárias detêm mera participação, sem influência significativa
Principais alienações recentes
Subsidiárias da Petrobras, entre elas Transportadora Associada de Gás (TAG), BR Distribuidora, Liquigás, distribuidoras no Paraguai e Pasadena
Participações da Eletrobras em Sociedades de Propósito Específico (SPEs)
Participações da Petrobras em campos de petróleo 
Participações do BNDES em empresas como Petrobras, Fibria, Marfrig, Vale e Light
Ações em diferentes companhias, entre elas Instituto de Resseguros do Brasil (IRB), Banco do Brasil (ações excedentes) e Neoenergia
Fonte: Gaúcha ZH
Mais notícias sobre GERAL