16/11/2023 | 11:16 | Geral
Evento reuniu colaboradores da instituição e profissionais da rede municipal de educação de Três de Maio e São José do Inhacorá
A palestra com o médico pediatra Renato Coelho lotou o auditório da Sicredi Noroeste RS/MG na noite de segunda-feira, 13 de novembro. Promovida pela Apae de Três de Maio, com parceria da Sicredi Noroeste RS/MG e municípios de Três de Maio e São José do Inhacorá, reuniu colaboradores apaeanos e profissionais da rede municipal de educação de Três de Maio e São José do Inhacorá.
A abertura do evento contou com as falas do vice-presidente do Sicredi Noroeste RS/MG, Marcelino Colla; da secretária de educação de Três de Maio, Vera Kuhler; do prefeito de São José do Inhacorá, Gilberto Hammes; e do presidente da Apae de Três de Maio, Paulo Camargo.
Camargo destacou a importância das parcerias fortalecidas para que a vinda do palestrante Renato fosse possível, e agradeceu a presença do público “Aproveitem esta oportunidade de ampliarmos os conhecimentos com este profissional de renome.”
Renato Coelho é médico pediatra, mestre em Ciências da Saúde, especialista na Teoria e Técnica de Intervenção na Relação Pais-Bebês, preceptor do Ambulatório de Desenvolvimento do Hospital da Criança Santo Antônio - Santa Casa de Porto Alegre e presidente do Comitê de Pediatria do Desenvolvimento e Comportamento - Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul.
Ele, que esteve pela primeira vez na Apae de Três de Maio, iniciou sua fala abordando sobre o encontro que teve na instituição, na tarde de segunda-feira, a fim de discutir e conversar sobre questões especializadas na área, e, posteriormente, da satisfação de palestrar para o público.
‘É preciso enxergar além da deficiência e ter noção das habilidades do indivíduo’
O tema da palestra foi ‘Pessoas com deficiência: o que mudou? Funções e responsabilidades da sociedade, da família e da escola’. Conforme Renato, se olharmos a história da humanidade e como ela lidou com estas questões e o quanto avançamos até aqui, vamos refletir: “qual é a nossa função e responsabilidade? Temos crianças e famílias com situações com deficiência. E o diagnóstico de uma criança com deficiência nomeia ou aprisiona? Porque não raro teremos as duas coisas – nomeia e liberta ou às vezes aprisiona.”
Ele seguiu, afirmando que é preciso enxergar além da deficiência e ter noção das habilidades do indivíduo. “Os pais ficam presos ao filho ideal que gostariam de ter ou ao filho real que têm? Se ficarem presos ao filho ideal, isso vai aprisionar. É preciso ter isso em mente, se não se fica brigando com a deficiência e não se olha as habilidades do indivíduo.”
A história da pessoa com deficiência na humanidade serve de reflexão, de acordo com o profissional. Algumas passagens históricas são ruins de relembrar, pois durante muito tempo, quando alguém nascia com deficiência ou no decorrer apresentasse dificuldade, não sobrevivia porque as adversidades eram muito grandes e muitas sociedades tinham como norma eliminar este indivíduo do convívio de diversas maneiras.
Frente a uma situação de diagnóstico de um filho, hoje tem-se a diferença do humano de antigamente. “O que mudou em nós hoje? O processo de civilização, de entender e refletir o que é a vida e os fatores que nos envolvem, de aceitarmos a condição humana de que somos finitos, que temos uma passagem e podemos fazer algo para que esta passagem seja menos ruim para quem está do nosso lado. A transformação que a sociedade passou nos últimos 30 anos é de entendermos que a diversidade do humano é muito grande”, discorreu.
‘Casos de autismo têm aumentado por conta dos critérios diagnósticos e por fatores de risco que fazem com que estas condições genéticas apareçam’
Na sequência, o médico tratou sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA), uma deficiência que muito se fala e que desafia a sociedade para que se possa ajudar essas crianças, jovens e adultos com o transtorno. “O conceito do TEA mudou, a neurociência foi evoluindo a ponto de nos mostrar isso. Ele é um tipo de deficiência, um jeito de funcionar a mente que deixa o indivíduo com uma dificuldade de interação social. Se chama assim porque é um transtorno do neurodesenvolvimento. Transtorno e não doença porque não é um problema que se acomete no cérebro ou que causa lesão no cérebro subitamente: é um jeito de funcionar a mente que veio com um distúrbio de funcionamento de origem genética; transtorno porque este jeito de funcionar que o indivíduo tem traz prejuízos e dificuldades para ele, que acaba se isolando, sem nos entender e nós sem entendermos ele.”
Este transtorno do neurodesenvolvimento é visto como um distúrbio neurobiológico de natureza genética, que se expressa através de uma anomalia do comportamento social, e no momento sem exames que auxiliem no diagnóstico. “Ele é basicamente clínico, de observação do indivíduo nos seus comportamentos para então se construir o diagnóstico”, explicou.
Renato disse que o espectro tem uma apresentação clínica muito ampla e que tem a convicção de que estas classificações sofrerão mudanças nos próximos anos, pois a neurociência está evoluindo. “O espectro é como se fosse um relógio que vai de zero a cem. Zero seriam casos levíssimos, que para diferenciar é difícil. Pela quantidade de sintomas, no cem, por exemplo, ficam mais evidente as dificuldades e, consequentemente, o diagnóstico, pois os atrasos são robustos.”
Perto de cem é o que Leo Kanner – psiquiatra austríaco que em 1943 publicou a obra ‘Distúrbios Autísticos do Contato Afetivo’, em que estudou 11 casos de pessoas que apresentavam uma incapacidade de relacionar-se –chamava de autismo no passado.
Hoje, segundo o pediatra, entraram para o TEA casos de pessoas que no passado não eram vistas assim. “Por isso há um aumento muito grande de casos de autismo. Mas e este aumento ocorre porque mudou o critério diagnóstico ou há mais alguma coisa?”, questionou o palestrante.
De acordo com Renato, estudos mostram que 80% do número de casos de autismo se explica pela mudança do diagnóstico e 20% pelo crescimento de casos, que se dá porque atualmente existem outros fatores de risco que fazem com que a predisposição genética faça o problema aparecer.
“Vários estudos mostram fenômenos como crianças prematuras, que nascem antes do tempo e passam muito tempo na UTI com um tipo de estresse toxico que a coloca em uma condição de vários dias cheia de aparelhos, e este ambiente pode ser um fator de risco. Outro fator de risco é a idade com que se tem os primeiros filhos hoje. Nossos pais tinham filhos com 20 e poucos anos. Hoje passa dos 35, o que aumenta o risco de trazer estes problemas do neurodesenvolvimento. Então se tem a mudança do diagnóstico e o aumento de fatores de risco que fazem com que estas condições genéticas apareçam”, esclareceu.
Inclusão escolar de crianças com deficiência
Ao se dirigir especificamente aos professores, Renato explanou sobre a inclusão escolar, um assunto sempre em pauta e que leva à reflexão sobre as dificuldades encontradas neste processo. Ele apresentou o caminho percorrido pelo movimento da educação inclusiva até a atualidade. “As coisas foram acontecendo e fazendo a sociedade cumprir normas. Isso provoca mudanças, é um processo de descontruir um conceito para construir outro. Este processo de desconstrução é continuo”.
E indagou o público: “Qual a nossa função e responsabilidade? No passado, a humanidade fazia exclusão, depois segregação. Se avançou com a integração e então chegamos à inclusão. Foi se avançando com a inclusão escolar, envolvendo escola e professor. Nesta linha, qual a responsabilidade da família? Família e escola precisam ter aproximação e debate contínuo para ajustar os funcionamentos e as responsabilidade de cada uma”.
A ligação entre escola e família, conforme o médico, necessita do olhar de vários profissionais. “Como vamos lidar com aquelas características da criança e a limitações dela? Cada uma tem suas peculiaridades, habilidades e deficiência. Não existe uma receita única que sirva para todas. Individualizar o tratamento é fundamental. Essa interface se faz necessária para que se possa entender a função e responsabilidade da família e da escola. Sabemos que a cobrança que recai na escola é muito forte, pois a criança vai para escola cada vez mais cedo, criando uma relação forte com a instituição. Neste processo, entram os auxiliares de ensino e os monitores, necessários porque vêm ao encontro da promoção da inclusão.”
Ao concluir a palestra, disse que é importante que os profissionais da educação, que estão na linha de frente, possam ter uma assessoria. “Temos que entender que estas crianças precisam conviver e é nosso papel tentar desfazer alguns nós que se apresentam na caminhada da criança. Se não for feita uma intervenção precoce, talvez se condene a criança a ficar presa em suas dificuldades dela. Aqui cito a frase de Frederick Douglas: ‘É mais fácil construir crianças fortes do que consertar homens quebrados’”.
‘O trabalho desenvolvido na Apae de Três de Maio me surpreendeu’
O médico destacou que a primeira visita à Apae local lhe causou uma impressão muito boa. “O ambiente é muito bem estruturado, com recurso humano fantástico. A equipe veste a camiseta e é entrosada e sincronizada. O trabalho desenvolvido na instituição me surpreendeu”, disse.
Segundo ele, as Apaes, neste contexto como ONGs, têm mais de 70 anos no Brasil, e, em Três de Maio, 54 anos, exercendo um papel diferenciado na comunidade. “São casos graves, e lidar com isso exige um equipe multiprofissional como a que eu encontrei aqui, que avalia, faz reunião de equipe e decide o que fazer e como tratar cada caso.”
Renato afirmou que a Apae faz uma diferença muito grande em uma comunidade como Três de Maio. “E boa parte de sua arrecadação vem de doação da comunidade. O Poder Público também precisa ver a responsabilidade que têm neste processo.”
Ele acrescentou que, como a demanda deste trabalho está crescendo, os tratamentos se fazem cada vez mais necessários. Por isso, é fundamental que a criança com deficiência possa ter em casa, com os pais, a continuidade, a fim de complementar o tratamento o que a Apae faz.
“Chamamos de treinamento parental, que usa a força dos pais para que façam o tema de casa, trazendo também a responsabilidade deles. O treinamento parental leva em consideração o tempo do luto, quando os pais se revoltam com o diagnóstico, até que aceitem o problema, e isso varia de família para família. Cada pai e mãe, frente ao diagnóstico, tem um caminho de pedras, que podem ser grandes, pequenas ou pontiagudas. Mas é preciso passar neste caminho, que é de aprendizado de vida. Maturidade do adulto é, frente às adversidades, procurar uma saída e descobrir recursos para enfrentar a realidade da vida como ela é. É um processo complexo”, finalizou Renato.