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03/02/2024 | 05:06 | Geral

''O (ex) presidente confiava numa rede paralela de agentes'', diz número 2 da Abin

Marco Aurélio Chaves Cepik diz estar empenhado em garantir que nenhum aparelhamento da instituição deixará de ser investigado

Marco Aurélio Chaves Cepik diz estar empenhado em garantir que nenhum aparelhamento da instituição deixará de ser investigado
Cepik também é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Divulgação / Abin

Com menos de 72 horas como número 2 da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), o gaúcho Marco Aurélio Chaves Cepik, também professor da Pós-graduação em Estudos Estratégicos (PPGEEI) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), tem se empenhado em garantir que nenhum suposto aparelhamento durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro deixará de ser investigado.

Cepik, que está no governo Lula desde os primeiros meses do mandato, chefiava a escola de formação da agência, a Esint. Foi convidado para o cargo de diretor-adjunto após a saída de Alessandro Moretti, em meio à operação da Polícia Federal (PF) que investiga a suposta espionagem pela Abin de desafetos de Bolsonaro e sua família.

O novo diretor-adjunto da agência, afirmou à coluna, na tarde desta sexta-feira (2) que a Abin está comprometida com a apuração dos fatos e com a reconstrução das bases de funcionamento do sistema de inteligência, para que os atos antidemocráticos, como os de 8 de janeiro de 2023, não se repitam.

Confira a íntegra da entrevista
Quando o senhor recebeu o convite para ser o diretor-adjunto, o que lhe pediram exatamente? Qual é a sua missão como número dois da Abin?

Eu já estava trabalhando aqui desde abril do ano passado como diretor da Escola de Inteligência. Agora, em um cargo de diretor-adjunto, eu continuo trabalhando na reestruturação dos processos internos e na melhoria contínua do processo de produção de conhecimento na área de inteligência. Isso é o que o diretor-adjunto faz, e coordena as áreas de produção para a elaboração dos relatórios de inteligência que subsidiam a decisão governamental.

O senhor tem dito que há indícios que apontam para a existência da "Abin paralela". O que exatamente leva o senhor a essa conclusão?

Na verdade, o que eu tenho dito desde a primeira entrevista para a GloboNews é que isso é o que está afirmado pela Polícia Federal no âmbito do inquérito. Com base nas provas que eles já colheram e deram suporte à hipótese investigativa que eles estão apresentando ao juiz. No caso do inquérito interno, também foi verificado, no processo de sindicância, que há indícios de alguma irregularidade no uso da ferramenta contratada vigente. Isso foi encaminhado no âmbito da sindicância para a Corregedoria Geral da União. Agora, nós temos que esperar os resultados desses procedimentos operatórios para verificarmos as condutas individuais e a extensão em que isso ocorreu aqui na Abin no governo passado.

Desde que a investigação da Polícia Federal se tornou pública, há suspeita de um núcleo político vinculado a servidores da Abin. Também há suspeitas de acobertamento por parte do atual governo. O senhor tem dito que, se houvesse essa hipótese, não faria sentido, porque o próprio governo tem interesse e está fazendo o possível para investigar. É nessa linha que o senhor responde a essas suspeitas?

Primeiro, durante a administração do governo passado, houve a manifestação clara de que o (ex) presidente confiava numa rede paralela de agentes em diferentes órgãos. Durante a gestão do delegado Ramagem na Abin, um conjunto de policiais federais veio trabalhar aqui, ocupando cargos de chefia, e alguns deles não se reportavam aos chefes regulares, mas sim diretamente ao diretor Ramagem. Então, é nesse sentido que existem indícios, mas eles estão sendo apurados.

Qual é a extensão da conexão do delegado Ramagem com outros atores? 

A vinculação era subordinada à época ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e o ministro era o general Augusto Heleno. Politicamente, agora também o procedimento investigatório da Polícia Federal está procurando verificar qual foi o papel do general Heleno nisso. Mas tudo isso, por enquanto, está em sede de investigação policial, não cabe a nós fazer ilações sobre isso antes do resultado do inquérito e do próprio processo judicial. Existem medidas que são devidas há muito tempo para o aperfeiçoamento do controle das atividades de inteligência, e essa crise está criando oportunidade para que façamos isso. 

A reorganização do sistema brasileiro de inteligência, a reorganização interna da Abin, tudo isso está sendo feito, mas eram coisas que, embora tenham ficado mais evidentes como necessárias agora, já eram necessárias antes também ao longo dos últimos anos.

Como é possível que alguém aparentemente com ligações com o ex-presidente Jair Bolsonaro ainda pudesse estar no cargo, como era o caso de Alessandro Moretti. Há ainda pontas soltas?

O doutor Alessandro Moretti trabalhou em cargos de comissão e de responsabilidade no governo Rollemberg do PSB e no Distrito Federal, no governo Dilma. Também ocupou posições no governo Bolsonaro. Isso não o faz um criminoso ou alguém que tenha sido favorecido de alguma maneira. Esse processo precisa ser tratado com cuidado, pois as opiniões políticas, o voto das pessoas em relação ao passado, foram próprios da democracia. 

Entendemos que, em Brasília, os órgãos têm servidores de carreira que ocupam cargos comissionados de diferentes governos. Portanto, não é possível iniciar um governo demitindo servidores públicos de carreira. Doutor Moretti foi exonerado, pediu afastamento, assim como outros diretores em diferentes órgãos. Isso foi feito em parte para evitar qualquer desconforto em relação a qualquer atividade e também para que eles possam se defender das hipóteses investigativas que foram aventadas. 

Nesse sentido, não acho que houve nada de tardio nisso. O que ocorreu foi um processo natural em que as sindicâncias internas, os processos investigatórios e o estabelecimento da agenda de reconstrução de uma determinada política governamental vão se desenvolvendo ao longo do tempo. Não sei quanto disso foi feito, por exemplo, no próprio Gabinete de Segurança Institucional, na presidência da República, em outros órgãos, nos ministérios, mas certamente aqui na Abin posso garantir que a equipe atual de diretores está totalmente comprometida com a ampliação dos fatos do passado e também com a reconstrução das bases de funcionamento do sistema de inteligência, necessário para evitar eventos semelhantes ao ocorrido em 8 de janeiro de 2023.

Nesse momento, o senhor pode afirmar que na Abin não há mais riscos como os que se viveu no passado?

Isso não depende apenas de discurso. Isso depende de refazermos regras, refazer procedimentos, reconstruir sistemas de maneira mais auditável e rastreável, prestando contas à sociedade, aumentando as medidas de transparência. Tudo isso está em curso regularmente no serviço público, e na universidade também, é sempre possível que algum servidor possa violar regulamentos e ter condutas inadequadas. É para isso que servem os sistemas de correção regulares, as auditorias. Temos uma área de conformidade, representantes da Advocacia-Geral da União, além dos sistemas de controle interno, tanto o TCU quanto a Comissão de Controle das Atividades de Inteligência.

O que deve ser feito com o software FirstMile? Ele vai continuar sendo usado?

Esse software foi descontinuado em 2021. É importante que nossos leitores e a audiência entendam isso. O que está sendo investigado são eventos que ocorreram entre 2021 e 2022. Durante a vigência do contrato, está sendo apurado que o software foi utilizado de maneira irregular para monitorar telefones de pessoas de maneira ilegítima.

Até que ponto, na sua opinião, o cidadão comum esteve exposto?

O fato de existirem essas possibilidades em relação a autoridades e desafetos coloca em dúvida e enfraquece a confiança que todos nós temos na democracia e na cidadania. É errado, é prejudicial, e não pode acontecer. O direito à privacidade, as garantias fundamentais da Constituição têm que ser preservadas e defendidas permanentemente, porque o efeito perverso da violação disso não atinge apenas as vítimas diretas. Ela cria desconfiança em relação a toda a cidadania. Os números de telefones que serão divulgados, se houve, se não houve, serão muito importantes para tomarmos as providências para que isso jamais volte a acontecer.

Isso revela as fragilidades do sistema de inteligência e do Estado brasileiro?

Recentemente, o ministro (Cristiano) Zanin do STF acolheu uma medida referente à omissão do Congresso Nacional em regulamentar o uso da compra de ferramentas inclusivas por parte dos órgãos públicos. Nesse sentido, em até 10 dias, todos os órgãos devem manifestar sugestões para uma regulamentação a ser encaminhada ao Congresso Nacional. Considero isso um avanço importante, pois estamos diante de uma rápida modificação tecnológica. O Tribunal Superior Eleitoral também expressa preocupação com o impacto do deep fake e outras manipulações informacionais no processo eleitoral. Este é um momento em que, em todo o mundo, se debate a melhor forma de regulamentar e proteger essas questões.

Outro aspecto relevante é a necessidade de manter a soberania de dados e a soberania digital em uma época em que a concentração de poder econômico e político nas grandes corporações é significativa em todo o mundo.

O senhor acha que pode ter colocado em risco a segurança do Estado?

Depende do que estamos falando. Diretamente em relação ao uso do FirstMile, é importante entender que esse software foi desenvolvido porque havia uma falha no protocolo de comunicação entre as torres das empresas de telefonia. Essa falha permitia identificar quando um telefone se comunicava com uma torre e quando se deslocava para outra, e o software possibilitava capturar essas informações. Posteriormente, os protocolos de comunicação foram alterados pelas empresas fabricantes de equipamentos, corrigindo essa falha. Por isso, o FirstMile foi descontinuado em vários órgãos.

No entanto, se estamos nos referindo a brechas tecnológicas e práticas ilegais para obter informações, a situação é diferente. Hoje em dia, embora a falha no protocolo de comunicação tenha sido corrigida, existem outras ferramentas e softwares que podem ser utilizados para esses fins. É por isso que o Ministério Público e o Superior Tribunal Federal estão solicitando ao Congresso que não adie mais a regulamentação dessa questão. A legislação está avançando em outros países, na Europa, na China, nos Estados Unidos, e é crucial que o Brasil também esteja atento a essas questões.

Quando o senhor chegou à escola da Abin no início do ano passado, identificou que havia suspeitas de que a agência poderia ter sido instrumentalizada no governo anterior?

O principal desafio da reforma da Escola de Inteligência era transformar um centro de capacitação de curta operação, que fornecia muitas horas de treinamento, em uma escola de formação superior, com cursos de especialização e uma área de pesquisa em desenvolvimento doutrinário. Isso possibilitou a criação da primeira doutrina pública da atividade de inteligência no Brasil, publicada em novembro do ano passado e disponível no site da Abin. Essa doutrina contribui para responder à segunda pergunta, que é a necessidade de mexer nas instituições, nas regras, na legislação e aprimorar os processos. No entanto, é crucial também mudar a cultura institucional e fortalecer o espírito público.

O fortalecimento desse espírito público ocorre por meio da educação, e acredito no papel fundamental do sistema público de educação, tanto nas universidades quanto nas escolas de governo da União. A Escola de Inteligência faz parte do sistema de escolas de governo da União, sob a liderança da Enap (Escola Nacional de Administração Pública). Desenvolver uma formação adequada, uma cultura e conhecimento requer tempo. Mudar uma regra é mais fácil do que fazer essa regra se tornar parte do coração das pessoas. Esse processo pedagógico é essencial, e nisso a imprensa desempenha um papel crucial, tendo uma responsabilidade significativa no fortalecimento da esfera pública. Não podemos permitir que ela seja capturada por interesses privados ou mitologias estranhas. Essa preservação só pode ser alcançada por meio do debate público e do fortalecimento da esfera pública, onde órgãos públicos, imprensa e universidades atuam conjuntamente.

Fonte: GZH
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